Saturday, November 26, 2011

Separação


Ela me deu um cheque em branco para que eu pagasse minhas contas com o dentista. Assinou e me entregou.

Depois, meu de seu coração em branco, para que dele eu me servisse. Rasgou-o do peito e me entregou.

Observei-a mutilada em meio às malas que se empilhavam. Seus olhos eram abismo árido. Vermelhos, expunham-me a úlcera avassaladora que lhe perfurava a alma.

Como uma garganta ressequida anseia por qualquer gota d´água, sua figura - agora toda uma ferida explícita e ardente - debulhava-se por qualquer sopro vital para não sucumbir.

Estremeci, me contagiei. Mas antes que meus lábios se movessem, contive a precipitação da fala. Balbuciei, engoli. E não cedi.

Monday, November 21, 2011

Alívio


Neste momento é um outro quem toma conta de mim. Eu o desconheço. Desconheço completamente. Sua essência é especialmente interessante.Decidido, é avesso às mesuras mais cerimoniosas. Estabeleceu-se sem cortesias cá dentro.

Traz consigo feridas já cicatrizadas, sinais de ultrapassadas (e vencidas) contendas sentimentais tortuosas. Marcas que não faz questão de esconder e até exibe com certo orgulho.

O desconhecido ignora-me, desrespeita-me, me rasga, me machuca. Mesmo assim, revigora a alma. Impotente, agradeço-lhe.

Então lhe empresto as veias e já teu sangue mistura-se ao meu. Empresto-lhe os olhos e já é tua a óptica com que enxergo as cores. Toma-me o peito e já é outro o pulsar do meu coração. No espelho, já são dele os meus traços.

Aceito então que tomara tua forma mesmo antes de me dar por isso. Que emergiste de dentro de mim, porque já não lhe comportava o hiato da minha existência, espaço no qual transitava disforme.

Amálgama de tudo o que fui depositando inconscientemente em qualquer canto da alma, ele formou-se então. Com tal solidez que me arrebatara.E logo me tomará completamente.

Enfim, respiro. E me entrego. Porque dentro da minha alma ele ascende um fogo que a devora.

"Enfim, cara, vieste - e bem Com ânsia te esperava - e muito"
(Trecho de Alívio - Safo de Lesbos)

Thursday, November 10, 2011

Agridoce



Como me surpreendeste, meu doce. Me surpreendeste e foste superestimada por este que confidencia a descoberta pensando em voz baixa, meio que para não se convencer disso.

Blasfemei-te, minha cara, por expor minhas mais atormentadas frustrações. Detestei nosso beijo mais ensolarado por jamais encontrar-me desde então.

Minha pequena, saiba que arrancaste todo o conforto emocional que me trouxeram alguns anos de terapia. Resgataste, até com elegância, meu medo enterrado no fundo das entranhas.

Deste um derradeiro trago na minha última garrafa de vinho. Não maneiraste na volúpia com que me sugou as ilusões.

Destilaste, meu coração, sua verborragia repleta de ideologias entusiastas, transbordaste o gozo de viver enquanto eu suspirava e engolia seco minha insignificância, uísque barato, sem gelo, que rasga a garganta.

Distancia-te um abismo de mim não pelas BR's da vida. Mas por tudo o que gentilmente me omite.

Caio no esgoto ao som dos amores fodidos que Billie Holiday escancara como um corte aberto. Quero me perder no lamento de Lady Day. Ser conduzido por sua melodia embriagada e atormentada melancolia.

E depois arriscar outra dose